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Angela Davis define Rio como 'a cidade de Marielle' e cobra punição a mandantes

Ativista e escritora falou para uma plateia de 600 pessoas no Cine Odeon, no Centro do Rio, e recebeu a Medalha Tiradentes, principal honraria do Estado

· Matérias

 

RIO — “O Rio de Janeiro, essa cidade espetacularmente bonita é, em primeiro lugar, a cidade de Marielle Franco.”

A noite era de Angela Davis, mas a sua homenageada era a vereadora assassinada, lembrada diversas vezes em seu discurso. Filósofa, ativista pelos direitos civis e feminista interseccional, a americana discursou ontem em evento pela primeira vez no Rio.

Durante cerimônia de abertura da 12ª edição do “Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África, Caribe e outras diásporas”, no Cine Odeon, a ex-Pantera Negra também recebeu a Medalha Tiradentes, maior honraria do Estado do Rio, entregue pela deputada estadual Renata Souza e Luyara Franco, filha de Marielle Franco.

— Minha mãe dizia que ‘eu sou porque nós somos’. Mas eu costumo dizer que somos resistência porque ela foi luta. Que a gente se junte para vencer a barbárie — afirmou Luyara ao entregar a medalha. HOMENAGEM A ANGELA DAVIS LOTA CINE ODEON 

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 Davis recebeu a Medalha Tiradentes, maior honraria do Estado do Rio, pelas mãos da deputada estadual Renata Souza e da filha de Marielle Franco, Luyara.  Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo  A ex-Pantera Negra agredeceu à plateia pela acolhida calorosa Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo  Angela Davis pouco antes de ser chamada ao palco do Cine Odeon, no Rio, no qual foi homenageada Foto: Antonio Scorza  A feminista negra e anticapitalista Angela Davis recebeu o carinho da plateia lotada do Odeon Foto: Antonio Scorza  Angela Davis: "Eu me sinto profundamente honrada de estar aqui, na cidade de Marielle Franco, um lugar que por décadas aguardei para visitar". Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo PULAR

PUBLICIDADE Do lado de fora do Odeon, um telão foi colocado para transmitir a fala de Angela Davis. Além das cerca de 600 pessoas que estavam dentro do cinema, outras centenas assistiram ali, ao ar livre Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo  Cine Odeon lotado para a abertura da 12ª edição do “Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África, Caribe e outras diásporas”, no qual a ex-Pantera Negra Angela Davis foi homenageada Foto: Antonio Scorza  

Após receber a medalha, Davis agradeceu e prometeu “honrá-la para sempre”. Sobre o Rio, ou “a cidade de Marielle Franco”, a feminista afirmou que acompanha há um tempo, mesmo que de longe, a história da cidade, principalmente de quem mora nas favelas, os negros e ativistas.

— Eu me sinto profundamente honrada de estar aqui, na cidade de Marielle Franco, um lugar que por décadas aguardei para visitar. A cidade do carnaval, do Pão de Açúcar. Mas que eu também aprendi sobre as favelas e desde muito jovem me identifiquei com a história das pessoas que vivem nesses lugares. E agora, poder acompanhar o legado que Marielle deixou para todo esse povo é uma honra.

 

Angela Davis também teve um encontro reservado com Antonio Francisco, Anielle e Marinete — respectivamente, pai, irmã e mãe de Marielle. Ela está no Brasil para a divulgação do livro “Uma autobiografia”, pela editora Boitempo. A ativista é uma das vozes mais atuantes no movimento negro mundial e fez parte do grupo “Panteras Negras” na década de 1960.

— É uma época maravilhosa para estar velha. Porque nós vemos que o trabalho que desenvolvemos por anos fez diferença. Vendo as jovens negras engajadas em movimentos políticos, eu compreendo o que fiz nos anos 50, 60, 70, 80, 90 e 2000. A intergeracionalidade é que dá significado.

Além das 600 pessoas que lotaram a sala do Odeon (algumas sentadas no chão), outras centenas também puderam acompanhar uma transmissão ao vivo por meio de um telão disponibilizado em frente à Praça da Cinelândia.

A conferência “A liberdade é uma luta constante”, ministrada por Angela Davis durante a cerimônia, foi comentada pela escritora Conceição Evaristo e mediada pela jornalista e colunista do GLOBO Flávia Oliveira.

Em sua fala, Davis fez comparações sobre o atual momento do Brasil com os Estados Unidos.

— Em razão da atual conjuntura do Brasil, que é semelhante a dos Estados Unidos, é importante buscar afirmações, fortalecimento e mostrar que a nossa luta contra o racismo, capitalismo e patricarcado não são em vão. A resistência ao presidente deste país também se mostra quando não evocamos seu nome. Porque o mencionar confere reconhecimento e gera poder, mas pessoas por todo o planeta sabem o significado de ‘ele não’ — afirmou.

Cinelândia lotada 

Do lado de fora do Odeon, cerca de 500 pessoas se aglomeravam diante do telão ou na fila com esperança de entrar. A pedagoga Ana Paula Venâncio, 50 anos, chegou antes das 17h e esperava diante das grades para, quem sabe, conseguir ver o “ícone”.

— Eu vim pela oportunidade de vê-la de perto. Ouço falar de Angela Davis desde criança, é alguém que faz parte da minha vida. Não se pode negar o racismo no Brasil e ela é uma mulher que vem lutando pela questão racial e feminista há anos. É um ícone. Ela estar aqui nesse momento de política polarizada, em que há o genocídio dos jovens negros, nos ajuda a pensar nessas questões — afirma.

A amiga Aline Gomes da Silva, 35 anos, tem relação diferente com a homenageada.

— Embora eu tenha conhecido Angela Davis depois de adulta, ela é inspiração para meus estudos de doutorado em psicologia. É a oportunidade de ver uma teórica encarnada — diz.

Entre uma bandeira em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco, outra vermelha do PCdoB e até uma chilena, estava Gabriele Oliveira, de 25 anos, estudante de agronomia na UFRRJ para “prestigiar o evento e as influenciadoras negras”.

— É uma figura feminina negra que traz inspiração, me vejo representada por ela. É um ídolo vivo — diz a jovem.

Em meio à maioria de mulheres negras, Hugo Rosa não se sentia de fora:

— É um processo de identificação no que tange o sistema de opressão patriarcal. Como homem gay, me encontro num lugar de não dominação, não me vejo como aquele homem branco, hétero, rico. Por isso vejo nela um símbolo de resistência. Acho importante trazer essas pessoas à discussão: brancos irem a eventos de cunho racial e homens a eventos que discutam o feminismo — disse o mestrando em políticas públicas em direitos humanos na UFRJ.

O Globo