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O sistema prisional e a Covid-19

· Matérias,Covid

Em 19 de março, foi declarada a primeira morte por Covid-19 no estado do Rio de Janeiro. Desde então, informações oficiais revelam que houve, aproximadamente, uma morte por dia no sistema prisional do estado, mas apenas quatro óbitos teriam sido causados pela doença. Entretanto, como não houve necropsia ou testes, não há como afirmar, e tão pouco negar, que outros óbitos estejam acontecendo pela mesma razão.

Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança, mostram que, em junho de 2019, o Brasil havia alcançado o número de 758.676 pessoas em privação de liberdade, dentre as quais 33,47% estariam presas provisoriamente, ou seja, sem condenação. No estado do Rio de Janeiro, a população prisional era de mais de 54 mil presos, em dezembro de 2019.

Se compararmos à população privada de liberdade no ano de 2005, o número de pessoas encarceradas dobrou sem que houvesse ampliação proporcional em estrutura. Isso significa que, em pouco mais de uma década e meia, a superlotação tornou-se um fato tanto inegável quanto criminoso, criando um cenário que inviabiliza a garantia dos princípios da legalidade, da humanidade e da dignidade da pessoa humana consagrados na Constituição de 1988.

O Rio de Janeiro encarcera, mensalmente, uma média de 100 pessoas. Sendo majoritariamente negros, jovens, moradores da periferia, a seletividade penal materializa-se tanto no perfil dos privados de liberdade, como na execução judicial e administrativa: nega-se a presunção de inocência assim como as mínimas condições de existência. Celas superlotadas são produtoras de escuridão, umidade, lixo, insetos, doenças respiratórias, doenças de pele, infecções sexualmente transmissíveis, tortura e morte, o que nos permite afirmar que os jovens negros, ao serem encarcerados, são alvos das mais degradantes condições de desumanização.

Saúde

No que diz respeito à saúde, são muitos os fatores que envolvem a precarização da atenção básica nas unidades prisionais, como a redução do número de profissionais, insuficiência de insumos, a quase inexistência de fluxos e protocolos de atendimento, fechamento dos hospitais do sistema prisional e sua substituição por uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

Somados ao aumento da população carcerária e às precárias condições estruturais, as condições de saúde se convertem em sua antítese: um cenário propício para proliferação de doenças.

Tal quadro dramático traz diversas preocupações, em especial em tempos de pandemia. O sistema prisional é, evidentemente, um ambiente propício à proliferação veloz do coronavírus, haja vista a alta concentração de presos em celas, a insalubridade já anteriormente apontada e a disseminação do vírus se dá através do ar. Neste sentido, estão em risco as pessoas privadas de liberdade, bem como os agentes públicos que acessam as unidades prisionais.

Logo que anunciada a crise sanitária no país, a suspensão das visitas foi uma medida adotada para evitar a contaminação pela Covid-19. Como forma de amenizar a ausência absoluta de contato com familiares, elaboramos de imediato um projeto de lei, aprovado esta semana, que prevê que a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) deverá disponibilizar formas alternativas de contato dos presos com suas famílias durante a pandemia, em especial por envio de cartas.

Recomendação CNJ

Na contramão da política de encarceramento em massa, o Conselho Nacional de Justiça emitiu Recomendações que deveriam ser rapidamente cumpridas pelos Tribunais de Justiça dos estados, tendo como principal objetivo reduzir a disseminação intramuros e a letalidade da Covid-19. Uma das recomendações trata especificamente da libertação das pessoas que estão no grupo de risco, tais como idosos e hipertensos. Segundo dados da Fiocruz, existem aproximadamente 840 idosos nas prisões do RJ, 16% com 70 anos ou mais, além de cerca de 750 casos de tuberculose em tratamento, muitos com comprometimento pulmonar avançado, quadro que pode ser um agente de aceleração da Covid-19.

Ao invés de um processo de desencarceramento, como sugerido pelo CNJ, que possibilitaria o isolamento na quarentena, assistimos à manutenção de milhares de pessoas neste espaço de exclusão, isolamento e punição, sem qualquer plano eficiente de contingência para barrar a disseminação do coronavirus. Fica evidente que a prática de tortura e maus tratos segue se legalizando e se institucionalizando.

Uma das ações sugeridas recentemente pelo Ministério da Justiça ao Conselho Nacional de Políticas Criminal e Penitenciária foi a utilização de contêineres como resolução para abrigar presos doentes e idosos. O ministério alega que as instalações poderiam ser temporárias e com estrutura de hospitais de campanha. Esta medida nos remete a inúmeras experiências negativas pelo país, tais como a de adolescentes em contêineres no Espírito Santo, ou presos aglomerados nestes espaços no Pará.

Contêineres

A possibilidade de deslocamento de pessoas em privação de liberdade que estejam com sintomas da Covid-19 para espaços tais como contêineres ou celas modulares não permitirá que estes tenham acesso a ventilação adequada, água corrente acessível em tempo integral e a distância mínima recomendada. A pandemia já é uma realidade nas prisões, colocar estas pessoas em espaços reconhecidamente inapropriados é a certeza de que serão deixados para sucumbir a enfermidades sem as condições adequadas de tratamento. A não aprovação da orientação do Ministério da Justiça pelo Conselho Nacional de Políticas Criminal e Penitenciária é inegociável.

Recentemente, em Manaus foi noticiada uma rebelião na Unidade Prisional Puraquequara. As autoridades informaram que sete agentes prisionais ficaram reféns, ninguém foi ferido gravemente. As famílias afirmaram que se tratava de reivindicações por água e atendimento médico, direitos garantidos, mesmo para quem está privado de liberdade. Em meio à pandemia, os presos “rebelados” não tinham sequer acesso à água.

Uma confirmação escancarada de que o racismo estrutural baseia-se, atualmente, em uma política de morte e encarceramento: a despeito de toda legislação nacional e internacional sobre prevenção à tortura, ainda é possível, com conveniência e anuência da justiça, matar ou deixar morrer.

Silenciosamente a zona do “não ser” se confirma, cotidianamente, na realidade do sistema prisional. As pessoas em privação de liberdade já estão em cumprimento de pena, de acordo com a legislação penal brasileira. Não pode ser a elas imposta a pena de morte.

Renata Souza é deputada estadual no Rio de Janeiro e presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj. Renata Lira é advogada e coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj.

Le Monde Diplomatique

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