Voltar ao site

Com mostras agendadas ao longo do ano, Panmela Castro abre as portas de seu novo ateliê

Carioca estará em exposições em São Paulo, Goiânia e Porto Alegre: 'Consegui realizar os meus sonhos um depois do outro'

· Matérias

Com mostras agendadas ao longo do ano, Panmela Castro abre as portas de seu novo ateliê

Carioca estará em exposições em São Paulo, Goiânia e Porto Alegre: 'Consegui realizar os meus sonhos um depois do outro'

Absolutamente tudo passa pelo afeto na vida de Panmela Castro, cujas experiências pessoais e profissionais se fundem e explodem numa das carreiras mais proeminentes da arte contemporânea brasileira. Uma configuração que se espalha pelos próprios cômodos de sua casa-ateliê, um enorme sobrado de dois andares na Rua Pedro Américo, no Catete, para onde a carioca, de 40 anos, acaba de se mudar com a mãe, que ficou com a parte de baixo do imóvel. O endereço é carregado de simbologias, a começar pela própria localização. “Foi construído na mesma época que o Palácio do Catete, onde hoje funciona o Museu da República, o primeiro a adquirir uma obra minha, quando ninguém me reconhecia”, diz, sobre o prédio erguido em 1858, a menos de 500 metros dali.

Com plantas de plástico por todos os lados (“as naturais acabam morrendo”), luzes de boate, pisca-piscas e máquina de fazer bolhas de sabão, essas compradas para animar as bebedeiras curtidas sozinha ou com os amigos mais íntimos depois de um longo isolamento durante a pandemia, a casa é como uma grande instalação. Do antigo e badalado ateliê na Tavares Bastos (daí o acervo de equipamentos de luz), restaram pinturas da vista, que dava para a Praia do Flamengo. “São paisagens feitas de memória porque muita gente virou a noite comigo ali. Tinha essa coisa do sol que nascia, que é algo sublime no Rio. Uma vez que não estou mais lá, fico tentando chegar àquele momento perfeito. Geralmente, era quando todo mundo estava louco e feliz de ter curtido a noite, e vinha aquele sol... Ou também quando caía o dia e vinha a Lua. O meu trabalho é sempre o que resta das minhas vivências.” 

As telas seriam a grande novidade do novo endereço, mas acabaram “confiscadas” pela historiadora Lilia Schwarcz, que as pediu para uma mostra que propõe reflexões sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. “Pouca gente sabe, mas o Theatro Municipal foi palco de uma exposição na própria Semana de 22. Agora, faremos isso pela segunda vez”, conta Lilia, sobre a coletiva com inauguração prevista para este mês. O mote é mostrar uma produção mais abrangente e diversa em sua essência da arte brasileira. Panmela, portanto, não podia ficar de fora. “A obra dela é muito disruptiva. Como teve uma formação clássica, ela sabe se mover dentro da dita academia, mas sempre questionando tudo isso.

Formada na Escola de Belas Artes da UFRJ, a carioca alcançou projeção no grafite, mas é afeita às telas desde criança, quando ganhava materiais do pai e do tio. Sua primeira pintura a óleo, guardada no ateliê, foi feita aos 9 anos, inspirada na figura de uma iara. “Na minha casa havia dois livros, um de folclore e outro de mitologia grega”, recorda-se, sobre as primeiras referências, lembrando que também se interessava pelo universo das princesas, devido aos códigos femininos assimilados na época. “Minha mãe era costureira, e eu vivia paramentada com vestidos e babados.”

Após levar seus grafites ao mundo inteiro por cerca de dez anos, Panmela descobriu que já havia chegado ao topo dentro dessa área, e resolveu se voltar ainda mais à pintura. “Embora eu fosse muito rápida, levava 15 dias para fazer um mural como aquele da Rua do Lavradio, na Lapa”, conta. “Então, quis dedicar mais tempo às coisas que faço no ateliê.” Também havia um interesse pessoal em conquistar novos espaços dentro da arte. “Se meu trabalho entrasse nos museus, minha produção ficaria registrada. Por isso, quis partir do zero. Afinal, quando comecei a trabalhar com arte contemporânea, surgi como ‘ninguém’. Hoje, consegui fazer essa escalada e ser aceita. Isso é ser consagrada, cortada no sangue.” 

A fala faz menção à palavra que aparece marcada como cicatriz no colo da artista. A foto da ferida em evidência foi transformada na obra “Consagrada”, exibida na individual “Ostentar é estar viva”, uma das exposições mais badaladas do ano passado da Galeria Luisa Strina, em São Paulo, pela qual Panmela é representada. Na imagem, a artista veste um casaco de pele, e pérolas foram presas em torno da ferida ensanguentada. “Quem são as pessoas que elegem o que está nesses espaços e por que as elegem? É uma crítica a essas demandas de mercado. Sempre fui artista e me sustentei assim. Fiz faculdade, mestrado, ganhei fama no grafite... Mas há essa ideia da arte contemporânea como meio universal.”

A despeito das críticas, Panmela está hoje em alguns dos acervos mais importantes do mundo, como o Pérez Art Museum Miami, nos Estados Unidos, e o Stedelijk Museum, nos Países Baixos. No Brasil, aparece em instituições como Masp, Pinacoteca e MAR. Ainda este ano, abre uma individual em Goiânia e participa da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre. “Estou feliz porque consegui realizar os meus sonhos um depois do outro. E até isso tem a ver com afeto, ser aceita e amada.”

Antes mesmo de entrar para esses acervos, porém, Panmela já havia experimentado o reconhecimento internacional com outros trabalhos. A artista, que sofreu um cárcere privado após ser espancada pelo ex-marido em 2004, fundou há cerca de dez anos a Rede Nami, ONG pela qual usa a arte para promover debates e capacitações que buscam o fim da violência contra a mulher. Desde então, ela estima que 15 mil pessoas foram impactadas pelos trabalhos, que vão de oficinas em escolas ao encaminhamento das vítimas que precisam de ajuda. “Ela tem esse percurso que a torna ainda mais especial, além de produzir um trabalho muito forte conceitualmente”, ressalta a curadora da Luisa Strina, Kiki Mazzucchelli.

Ter o afeto como um motor faz com que as obras invariavelmente incidam sobre a vida de terceiros, como fica evidente na série “Retratos relatos”, em que pintou mulheres a partir de suas histórias, em sua maioria de abusos. Algo semelhante se repetiu, mais recentemente, nas chamadas “Vigílias” em que, a cada 15 dias, ela recebeu uma pessoa diferente em seu ateliê para produzir um retrato ao vivo. Boa parte dos encontros começavam à noite e se estendiam até o amanhecer, numa troca em que a anfitriã ouvia confissões e elaborações profundas dos convidados. “Eu me sinto como uma ferramenta para a pessoa se apresentar para o mundo”, diz. “É como se fosse uma troca. Faço a pintura, e você me aceita.”

A artista visual Adriana Varejão e a deputada estadual Renata Souza estão entre as retratadas, assim como a cantora MC Carol, que se emociona ao lembrar da experiência. “Até ontem, eu era a mesma coisa que um cachorro. Nunca fui escolhida para nada por causa do meu corpo e da minha cor. São dez anos cantando e, de repente, você passa a ter fãs, ser amada...”, desabafa. “Quando o quadro foi escolhido para exposição, pensei: ‘Como assim?’. Estar na parede de uma galeria foi muito importante.”

Panmela não anda só.

O Globo 

Link da matéria