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Artigo: Política em tempo de cólera

Não surpreende que o governador não apresente propostas concretas para redução de homicídios e feminicídios

Renata Souza e Ibis Pereira

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Na encíclica “Laudato Si”, o Papa Francisco assinala o respeito à dignidade humana como o fundamento de toda ordem social comprometida com a vida. Para o Bispo de Roma, a paz é uma obra da solidariedade. A preservação da ordem pública dependeria menos dos dispositivos de segurança do que da constituição de um ambiente de justiça e fraternidade. O Papa nos remete à grandeza da política, esfera de encontro, compromisso e partilha.

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Do recente decreto de flexibilização do acesso a armas de fogo à defesa entusiasmada do encarceramento em massa, passando pela visão tosca da polícia e do Direito Penal como antídotos para a insegurança —cujo exemplo eloquente é o pacote anticrime do ministro Moro —, percebe-se a toada fácil do combate ao inimigo. Há muito ódio e ranger de dentes em tudo isso, muito desejo de guerra. Nossos “liberais-conservadores” parecem decididos a superar a formulação nós/eles, especificidade da política, a tiros de fuzil. A “nova política” semelha à negação da política.

Vejamos o programa de governo Wilson Witzel. Algo nele desconcerta, para além da controversa autorização do abate de criminosos. A questão é menos escandalosa, mas não menos equivocada. Lá pelas tantas, se diz que a segurança pública precisa voltar a ser um “caso de polícia”, e não mais de política. Ocorre que essa tem sido a receita do fracasso: reduzir segurança pública à atividade policial, desconsiderando a dimensão da política. No diagnóstico, o problema se apresenta como solução. Não surpreende, portanto, que o governador não apresente propostas concretas para redução de homicídios e feminicídios no Rio de Janeiro.

Sobre as agências de segurança têm recaído a conta do reducionismo, ou seja, as instituições têm sido demandadas sem o direcionamento de políticas públicas consistentes, fundamentadas em evidências e, por isso, capazes de articular ações integradas no curto, médio e longo prazos, através dos níveis municipal, estadual e federal. Tal posicionamento preocupa, porque expõe policiais e a população mais pobre, sobretudo, à indeterminação. A violência decorre, em grande medida, desse erro de perspectiva: substituir a política pela polícia.

Outro aspecto inquietante: a proposta de parceria público-privada como solução para a crise penitenciária. A ideia, adotada nos Estados Unidos na onda neoliberal, tornou a terra de Donald Trump a maior encarceradora do planeta. Mais presos, mais lucros. Encontraram no cárcere um modo de lidar com a exclusão, ganhando dinheiro. Menos custo e maior eficiência é o que argumentam para transformar o naufrágio humano em negócio.

Quando homens e mulheres são tratados como meios e não como fins, chegamos à beira do abismo, que se anuncia na retórica raivosa desse tempo estranho, a soar como uma trombeta do apocalipse. E não há salvação sem misericórdia. No país do “bandido bom é bandido morto”; do ódio que se espalha como uma praga; de parlamentares a serviço da bala e da degradação da natureza, a fazer da política ruína, como em Brumadinho, nunca é demais refletir sobre a lição de Francisco: política existe é para livrar a vida do poder da morte.

Renata Souza é deputada estadual (PSOL-RJ), Ibis Pereira é assessor parlamentar e foi comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro

Jornal O Globo

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