‘A ditadura não acabou nas favelas’, diz diretora do documentário Cheiro de Diesel
Em uma sessão lotada por comunicadores populares, estudantes de escolas e moradores de favelas, o Cine Odeon, no centro do Rio, recebeu nesta segunda-feira (6) a segunda exibição de estreia do filme Cheiro de Diesel no Festival do Rio de cinema. O longa-metragem aborda a atuação militar prevista pelo decreto federal de Garantia de Lei e Ordem (GLO), focando nas intervenções de 2014, 2017 e 2018 nas favelas da Maré e da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, e do Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, pelas Forças Armadas.
A partir do depoimento de moradores e registros feitos principalmente por comunicadores populares, o filme narra o cotidiano com a presença das Forças Armadas, quando a violência de Estado se transformou em rotina, marcada por soldados em tanques de guerra, invasões a escolas, postos de saúde e casas, revistas constantes, assassinatos e a censura desses comunicadores.
A sessão foi seguida da homenagem Maria Carolina de Jesus prestada pela deputada Renata Souza (Psol) às diretoras e ao elenco do filme. Na sequência, um debate mediado pela jornalista Cecília Oliveira pontuou algumas questões levantadas pelo longa como a importância da documentação e memória e a dificuldade dos moradores de favelas serem ouvidos mesmo quando são vítimas de violência.
“Documentar no cinema essas violências é mostrar que elas são orquestradas. É um plano de Estado e existe um arcabouço jurídico que permite que isso aconteça”, respondeu Natasha Neri, uma das diretoras do filme. No entanto, esse processo não é simples como registraram Vitor Santiago, Edrilene Neves e Jefferson Marconi, todos vítimas da violência do Estado. O carro de Santiago foi alvo de tiros por um cabo, que o atingiram e o deixaram paraplégico. Já Neves teve o filho assassinado com oito tiros nas costas e Marconi foi torturado por vários dias ao ser entendido como suspeito de participação no tráfico. “Nossa palavra não vale de nada. Eu senti isso na pele. Porque quando a gente vai dar o depoimento, tudo o que a gente fala depois é desconsiderado. Aí eu pergunto, traz testemunha para quê?”, disse Neves em resposta à Cecília Oliveira.
“Historicamente, colocam a gente como criminoso, violento, marginal. Só que é o contrário. A favela é criminalizada, marginalizada, violentada. A gente tem um Estado brasileiro que olha as favelas como um problema social. E aí, a gente tem uma mídia comercial que coloca a imagem da favela também como um problema. E querem resolver esse problema com polícia. Com exército. Com a dita paz”, disse a também diretora do filme, Gizele Martins. E foi com ela que a reportagem do Brasil de Fato conversou após a exibição do filme. Confira a conversa.
Brasil de Fato – O filme começa com a invasão da Maré pelas Forças Armadas e trata dos impactos das GLO em 2014, 2017 e 2018. Houve aprendizados nesse período para que medidas como estas não retornem?
Gizele Martins – Pelo contrário. A gente está no Rio de Janeiro vendo o governo do Estado trazendo a [gratificação] faroeste, a ideia de que quanto se mais mata, mais o policial vai ganhar, então é licença para matar. Eu vejo o estado do Rio de Janeiro mais militarizado e o município querendo militarizar ainda mais. A guarda municipal segue batendo em camelô. Eu percebo que onde esse corpo negro e favelado circula no Rio de Janeiro, ele está sempre sob militarização e vigilância.
Então o filme traz a mensagem de que a ditadura não acabou nas favelas. A gente tem inúmeros movimentos que lutaram contra a militarização na ditadura, que sofreram na ditadura, mas cadê os favelados? Cadê a favela? Os depoimentos de quem sofreu na ditadura são os mesmos da gente hoje, então é a ideia de se somar a essa luta e de convocar a cidade e a sociedade a falar que isso ainda ocorre nas favelas do Rio de Janeiro, é preciso se sensibilizar para que a gente não tenha mais as ditaduras na dita democracia dentro desses territórios favelados negros.
Em relação a cobertura da mídia comercial nesse período, é possível visualizar mudanças?
A gente nunca teve um sucesso em relação à cobertura da favela nas mídias comerciais. E acredito que não vamos ter, porque o papel delas é criminalizar esse lugar, é negar, silenciar a gente. Então, não acredito nessa linha editorial e não acredito que essa linha editorial vai mudar.
Por outro lado, você acredita que a comunicação comunitária tem ganhado mais protagonismo?
A comunicação comunitária tem crescido, a gente tem uma grande referência no Rio de Janeiro, que é o Núcleo Piratininga de Comunicação [NPC], que forma vários coletivas nas favelas, a gente tem vários cursos de comunicação comunitária, várias mídias comunitárias. Hoje a gente teve aqui mais de 20 comunicadores comunitários cobrindo a atividade de várias favelas do RJ. Mas a gente não tem investimento público às mídias comunitárias, ou seja, o nosso país continua pecando em relação a orçamentos públicos, às mídias populares e comunitárias, e eu acredito que isso não é à toa, não querem dar oportunidade a quem fala, a quem denuncia, a quem traz memória sobre territórios de resistência do nosso país.
Vocês trouxeram imagens e depoimentos muitos fortes no filme. Houve dificuldade na obtenção desses registros?
Muitos dos vídeos que aparecem principalmente no início são imagens feitas por moradores das favelas e são vídeos que foram literalmente enviados e publicados no Maré Vive. Aí já dá pra perceber a qualidade das imagens que foram feitas por celular. Quando a gente fala especificamente da Maré, a maioria daquelas imagens foram feitas por jornalistas populares ou fotógrafos ou cineastas que já atuavam naquela época. Mas assim, do todo, a gente teve algumas dificuldades, mas a maioria a gente conseguiu por parceiros mesmo da comunicação popular.
Há anos você faz uma comparação entre o que ocorre na Palestina e o que ocorre nas favelas do RJ. Isso não aparece tanto no filme, você poderia fazer esse comentário?
Eu estive na Palestina duas vezes, em 2017 e 2023. O que eu presenciei ali, nunca vi em lugar nenhum na minha vida, mesmo sofrendo uma militarização na Maré a vida inteira, eu nunca presenciei algo tão pesado quanto é a realidade de Palestina, as pessoas moram entre grades, falta de acesso literal a comida, água, trabalho, é um apartheid. E hoje a gente vê uma tentativa de colonização daquela terra, e os palestinos me ensinaram que a denúncia em relação à militarização precisa ir além daquilo que a gente sente, a gente precisa denunciar as armas, denunciar as fábricas, denunciar quem está cometendo o genocídio, quem está cometendo a militarização.
O [Batalhão de Operações Policiais Especiais] Bope brasileiro foi treinar em Israel em 2016 e voltou com várias tecnologias de morte. A gente tem inúmeras armas que estão nas favelas, a gente tem os tanques de guerra israelenses, os caveirões que circulam nas nossas favelas são israelenses, os drones que estão nas favelas são israelenses, então a gente tem muita coisa em comum. E se a gente tem muita coisa em comum com quem nos viola, coloniza e quer nos matar e mata, a gente também tem que ter algo em comum que é a existência, a resistência e a luta conjunta, porque a gente está falando das mesmas coisas.