Um antivírus contra a fome
A ONU já declarou que a fome não ocorre no século 21 por falta de alimentos, mas pela deliberada negação destes a quem precisa. Gerado pela desigualdade, o vírus da miséria esvazia estômagos, agiganta-se e engole o futuro, tão duvidoso neste contexto de colapso sanitário, socioambiental, econômico e ético-político.
Segundo a ONU, 2020 terminou com 88 milhões de pessoas — 19 milhões de brasileiros — em situação de fome aguda, 21% a mais do que em 2019. No Brasil, em 55,2% dos lares, não se come o mínimo recomendado, segundo dados do Inquérito Nacional sobre Soberania e Segurança Alimentar, da Rede Penssan.
Nas favelas brasileiras, 68% comem uma refeição por dia, de acordo com pesquisa do DataFavela, Instituto Locomotiva e Cufa em 2.180 lares. Dessas famílias, 8 em cada dez admitiram depender da solidariedade para ter o que comer; 93% não têm poupança; e 71% vivem com menos da metade da renda pré-pandemia. A pesquisa foi aplicada em fevereiro, momento da queda dos valores do auxílio emergencial, de R$ 600 para R$ 300 e de R$ 1.200 para R$ 600 (no caso das mães solo), e de desemprego no maior grau desde 2012, com 14,3 milhões sem sustento.
O coronavírus não inventou a desigualdade, mas agravou os seus impactos. O ritmo da contaminação por Covid é duas vezes mais veloz nas favelas (105%) do que no município (45%), revelam os dados da saúde pública do Rio. O vírus não seleciona vítimas por classe ou raça, mas negras e negros correm risco 77% maior de morrer do que pessoas brancas, segundo a saúde pública de São Paulo.
A fome só não é maior porque emergiu das favelas uma potente ação de solidariedade, que esbarra, porém, na expansão da miséria, de outras doenças, como a tuberculose, do desemprego, do déficit de moradia, da carestia dos alimentos. Quem há pouco era doador hoje demanda ajuda. A resposta do Estado é insuficiente. Se em 2020 o auxílio emergencial reduziu a pobreza no Brasil em 3,74%, aconteceu o contrário no Rio: a faixa da população mais pobre cresceu 1,55%.
Para identificar causas e formular soluções — em articulação com atores do poder público e de movimentos sociais que atuam na linha de frente do combate à fome, como MTST e Coalizão Negra por Direitos —, assumimos, na Alerj, a presidência da Comissão Especial de Enfrentamento à Miséria e à Pobreza Extrema. Enquanto construímos um plano emergencial, agimos por meio de iniciativas como as indicações para reabertura de restaurantes populares; de auxílio para pequenos empresários; e de autorização do uso de verbas do Fundo Estadual de Combate à Pobreza no custeio e aumento do valor do cartão-merenda escolar.
A gente precisa cultivar a igualdade como antivírus para a fome e a miséria ou não haverá futuro, nem para aqueles 1% que insistem em usar o Estado a serviço do próprio enriquecimento. Façamos uma mudança radical, estrutural e urgente no modelo de gestão pública das riquezas, ou não haverá riquezas. Preservar a vida e a dignidade humana é a nossa palavra de ordem. A esperança urge aqui e agora.
*Deputada estadual (PSOL-RJ), presidente da Comissão Especial de Enfrentamento à Miséria e à Pobreza Extrema da Alerj
O Globo