Os primeiros cinco meses do mandato de Renata Souza, deputada estadual do Psol-RJ, mostram para que ela veio: enfrentar de frente o projeto assassino do governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSC), apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e favorável ao recrudescimento da violência estatal como resposta à crise de violência no Rio de Janeiro. A resposta veio com a tentativa da bancada do PSC tentar a cassar seu mandato.
Jornalista e doutora em comunicação e cultura, ela é a primeira mulher negra a ocupar o posto de presidente na Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). A parlamentar tem incomodado com o seu posicionamento pró-direitos humanos e sua defesa incansável pelas vidas negras e faveladas.
Cria da Maré, complexo de comunidades na zona norte da capital, Renata fez parte do mandato de Marielle Franco, vereadora assassinada em 14 de março de 2018, e há mais de 12 anos atua na área de Direitos Humanos. Renata e Marielle se conheceram em 2000, quando frequentaram o mesmo pré-vestibular comunitário. Renata, como Marielle, atuou por 10 anos no mandato do deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ). Assim que virou vereadora, Marielle Franco convidou Renata Souza para ser chefe de seu gabinete.
Mônica Francisco, Renata Souza e Dani Monteiro: atuais deputadas do Rio, todas integraram o gabinete de Marielle Franco | Foto: Reprodução/FacebookSouza é uma das mulheres negras que aparecem no documentário Sementes, como herdeiras da luta de Marielle. Com o assassinato de Franco, Renata sentiu a necessidade de se candidatar a um cargo no legislativo para continuar as lutas da vereadora. Ela foi eleita com quase 64 mil votos – a deputada progressista mais eleita do estado. Ela é autora do livro “Cria da favela: resistência à militarização da vida”, lançado em 2018.
Renata começou a olhar para a questão da segurança pública em outubro de 2006, quando Renan da Costa, de 3 anos, filho de sua ex-cunhada, foi assassinado. Entre as pautas do seu mandato estão o direito à vida, a luta feminista, a luta contra o racismo e o genocídio da população negra e favelada, e o direito à moradia. Durante 15 anos, atuou como comunicadora social em diversas favelas do Rio.
Como parlamentar, enfrenta resistência. Segundo O Globo, o governador Wilson Witzel disse que a deputada tem que ser cassada, resposta pela denúncia enviada por Renata à ONU (Organização das Nações Unidas) e a OEA (Organização dos Estados Americanos). O processo está em andamento na Alerj.
Para os líderes do PSC, a atitude da parlamentar do Psol é uma quebra de decoro, por se tratar de uma “uma manifestação pessoal disfarçada de institucional” contra o governador. Já o governador entende que ela deve perder o mandato porque usurpou as funções como presidente da Comissão de Direitos Humanos ao encaminhar a denúncia à ONU sem a deliberação de todos os integrantes do grupo.
Em entrevista à Ponte, Renata Souza conta como o seu mandato está sendo construído, explica a sua luta pela segurança pública do Rio de Janeiro e comenta a cassação de seu mandato, feita pelo PSC, partido do governador do estado.
Ponte – Em cinco meses de mandato você colocou segurança pública como sua pauta prioritária. Qual a importância de debater essas questões pensando na realidade do Rio de Janeiro?
Renata Souza – Minha pauta prioritária é a garantia do direito à vida e isso inclui debater e pensar em políticas de segurança pública eficazes, que não coloquem em risco a população fluminense. O que temos hoje no Rio de Janeiro é um governador que quer legitimar a política do abate, que diz que vai “mirar na cabecinha”, mas que não diz qual a política pública ele tem para reduzir o número de homicídios, para garantir condições de trabalho dignas aos policiais. Debater segurança pública no Rio de Janeiro é assegurar a vida das pessoas.
Ponte – Como combater esse projeto de governo de Witzel?
Renata Souza – Sem dúvida nenhuma esse projeto do governo Witzel é irracional e irresponsável. Por isso a gente precisa combater pensando em quais são os elementos fundamentais da política pública de segurança: a prevenção e a inteligência. Sem isso, não há qualquer êxito na política pública de segurança que assegure o direito à vida. Por isso precisamos sim nos respaldar nos dados produzidos pelo ISP (Instituto de Segurança Pública, vinculado à Secretaria de Estado de Segurança Pública) sobre letalidade policial, que aumentou no estado do Rio de Janeiro. Isso que vai dar subsídio para gente fazer políticas públicas que garantam o direito à vida. Precisamos combater e rebater com inteligência e mobilização do nosso povo preto, dos movimentos sociais e de todos e todas que acreditam numa sociedade plural e sem racismo, sem machismo, sem LGBTfobia porque, sem dúvida nenhuma, a minha eleição já é vista como afronta ao status quo (expressão do latim que significa “estado atual”).
Ponte – Você fez parte do mandato de Marielle. O quanto a vereadora te inspira no seu mandato?
Renata Souza – Marielle inspira não só a mim como a toda população. O legado da Mari é universal, não pertence a uma pessoa só. Isso seria apequenar Marielle. Todos que defenderem a população que sofre com o racismo, o machismo e a LGBTfobia carregam essa responsabilidade. Em especial, quando se remete à memória de uma mulher, negra, lésbica e favelada que ocupou a política para garantir a democracia. Sempre que a realidade parecia surreal a Mari dizia: “A vida é dura, querida”, “Vamos pra cima, negona”, era assim que ela incentivava quando algo parecia inalcançável. A luta contra as desigualdades sociais é o seu maior legado. Uma luta para que a humanidade não se desumanize.
Renata Souza ao lado da amiga e vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018 | Foto: Reprodução/FacebookPonte – De 14 de março de 2018, dia que Marielle foi executada, até agora diversas parlamentares negras do RJ já sofreram ameaças (como Talíria Petrone e Dani Monteiro). Agora vemos a tentativa do seu mandato ser cassado. O que isso representa?
Renata Souza – Pedir a cassação da minha mandata é uma tentativa de me silenciar, de interromper uma mandata a serviço dos Direitos Humanos. Quando questiono as atitudes absurdas e arbitrárias de um governador, que sobrevoa um município com um helicóptero servindo de plataforma de tiro, em vez dele responder aos questionamentos, ele age de maneira autoritária. Pedir para que deputados estaduais de seu partido solicitem minha cassação mostra claramente que Witzel não respeita a autonomia dos poderes e rasga a Constituição. É minha obrigação, enquanto deputada estadual, fiscalizar o poder executivo e assim o farei, doa a quem doer.
Ponte – Considerando que você é a primeira mulher negra a ocupar esse cargo, como tem sido ser presidente da comissão dos direitos humanos na Alerj? Quais os maiores desafios de ser uma parlamentar negra no estado do RJ?
Renata Souza – São todos os desafios que uma mulher negra enfrenta diariamente em sua vida política. Tentam diariamente nos silenciar, nos objetificar, nos desqualificar, mas mostramos dia a dia o quanto somos capazes de resistir e reexistir. É muito importante analisar como é ter uma mulher negra, da favela, dentro desses espaços de poder questionando um outro poder gera incômodo, causa asco, e se transforma em perseguição pessoal e política. A visibilidade garantida pelo nosso trabalho desconcerta os machistas e os racistas que dominam a política e a economia.
Ponte – Nos últimos meses, você fez denúncias aos Ministérios Públicos (estadual e federal) e à ONU sobre a forma que o governo Witzel vem tratando a questão de segurança pública no Rio, que está indo contra os direitos humanos. Como resolver essas questões? O apoio dos órgãos públicos e internacionais é uma saída concreta?
Renata Souza – É preciso dar atenção a forma como o governador propõe uma política de abate. Uma política pública de segurança qualificada precisa prever toda uma infraestrutura de prevenção a violência aliada a estratégias de inteligência. Solicitei que órgãos internacionais provoquem o governo brasileiro a apresentar políticas de redução do número de homicídios e da letalidade. Além disso, o básico: respeitar o estado democrático de direito.
Ponte – Quais são os próximos passos do seu mandato?
Renata Souza – O próximo semestre de trabalho legislativo vai ser muito relacionado às propostas mais concretas para barrar a letalidade policial, o aumento do número de homicídios e também de feminicídios. A gente precisa ter políticas concretas para assegurar a vida das pessoas. Isso é um desafio, mas vamos trabalhar muito para superar essa lógica que define que uma vida vale mais do que a outra. Precisamos de políticas públicas que assegurem o direito à vida e não o contrário. Para isso também a gente pretende organizar mais debates públicos para dar conta a uma reflexão sobre o racismo, que é estrutural e estruturante na nossa sociedade, mas também em relação ao machismo, que se releva como muito letal nas relações de gênero no Brasil, mas em especial no Rio de Janeiro que tem números elevadíssimos.
Ponte