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Julho das pretas: seguimos em marcha por mudanças na raíz

O Brasil viveu quase 400 anos de escravização de mulheres e homens negros. A herança das relações impostas pelo modelo escravagista persiste no imaginário da sociedade brasileira. Após 134 anos de uma “abolição inconclusa”, sem responsabilização dos algozes ou indenização às vítimas desse sistema cruel, não é exagero dizer que ainda vivemos em senzalas. Sob a égide do racismo, o Estado brasileiro é forjado organizando a vida de pessoas brancas e pretas de modo a normalizar práticas racistas. Neste cenário, mulheres negras, principalmente, nunca foram incentivadas a assumirem espaços de poder e liderança, muito pelo contrário, a vida pública não foi pensada para as mulheres negras.

Apesar da desumanização, das injustiças, dos abusos vividos por séculos pelas mulheres negras, e dos inúmeros obstáculos que limitam sua possibilidade de ascensão, são elas quem ativam processos de resistência e existência para si e para os seus e suas em suas comunidades. As mulheres negras seguem encarando diariamente o desafio de enfrentar e desconstruir os lugares de subalternidade e inferioridade que nos foram destinados pelo racismo e pelo sexismo.

Nós, mulheres negras que estamos na política, avançamos construindo um horizonte em que cada vez mais mulheres negras possam disponibilizar seus corpos para a tarefa da vida pública. Não nos basta o direito ao voto, nós queremos também ser ouvidas, queremos falar, queremos ocupar os espaços públicos que decidem sobre as nossas vidas. Queremos uma democracia construída com a nossa presença ativa e potente.

Vivemos um momento pulsante no debate racial, no debate sobre representatividade real em todas as áreas e instâncias de poder.

Primavera Negra, um termo que com certeza contempla este período, foi cunhado, no lançamento da Casa Escrevivência, pela jornalista Flávia Oliveira e endossado pela escritora Conceição Evaristo. É perceptível a força e os impactos de nossa organização e mobilização. E é justamente por isso que devemos celebrar nossa luta e seguir com olhos de ver, sem recuar um milímetro sequer.

Sabemos que o aumento do número de mulheres negras que se candidatam a mandatos parlamentares ou cargos do executivo não apaga todas as dificuldades que encontramos para chegar a esse lugar. Há maternidade, tarefas domésticas, trabalhos mal remunerados, estudos, militância, há um acúmulo de responsabilidades que obstaculizam a dedicação à política partidária. E em se tratando de mulheres negras, há que se reconhecer concepções racistas e patriarcais nas relações com os partidos políticos, homens brancos receberam 4,5 vezes mais recursos que mulheres negras e indígenas para suas campanhas no ano de 2022.

Neste mês de julho, quando voltamos às ruas para marchar pelo bem viver das mulheres negras, seguimos exigindo transformações radicais neste modelo de sociedade que continua tentando nos invisibilizar, nos calar e nos impedir o acesso aos espaços da vida pública dominando os saberes e recursos. É sobre a nossa ancestralidade ser discutida por nós, é sobre a nossa história ser contada em primeira pessoa.

* Renata Lira é uma mulher preta, nordestina, mãe, advogada, moradora de Niterói, mestre em Direitos Humanos pela PUC e doutoranda em psicologia pela UFF. Defensora de direitos humanos, Renata integrou a primeira equipe de peritos do Mecanismos Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Renata Lira atuou na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj e hoje atua na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Alerj, também compõe a coordenação política da mandata Renata Souza.

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