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Artigo: 'A gente precisa sobreviver a 2018', me disse Marielle

Ex-chefe de gabinete da vereadora conta que 'não há outra opção: o luto vira luta'

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“A gente precisa sobreviver a 2018”, me disse Marielle quando falávamos sobre as urgências políticas e eleitorais que se sobrepunham à vida cotidiana. Não imaginávamos que, às vésperas de um processo eleitoral incerto, ela seria vítima de um bárbaro crime político que a eternizou.

Eu só queria que ela sobrevivesse! Quando me deparei com aquela cena de horrores, questionei o motivo de não a terem levado, com Anderson, ao hospital. Eu tinha um fio de esperança de que ela sobrevivesse, mais uma vez. Afinal, não foram poucos os momentos em que Mari sobreviveu a tiroteios, no asfalto e na favela.
Nada fazia sentido. Mais uma de nós? Minha ficha caiu exatamente 40 dias após a execução, quando participava de um café da manhã com a mãe de Marielle, dona Marinete, e outras mães de vítimas de violência do Estado atendidas por Mari durante o período em que ela coordenou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. A força dessas mulheres, a maioria negras e faveladas, mostra como o amor é maior que a dor. E que não há outra opção: o luto vira luta. A luta pela sobrevivência simboliza a existência de Marielle. E a luta contra as desigualdades custou a sua vida.
Crias da Maré, nos conhecemos em 2000, quando trabalhei no Censo da Maré e entrei para o jornal "O cidadão", do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), onde Mari trabalhou como secretária. Quando passei no vestibular da PUC para Jornalismo, em 2003, Mari, que já estudava Ciências Sociais lá, foi responsável por eu conseguir uma bolsa integral. Nossa amizade e militância só cresceu quando trabalhamos juntas, por dez anos, com o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Em 2016, estive ao seu lado na vitoriosa campanha para vereadora e assumi a chefia de seu gabinete.
Minha história com Mari é mais uma entre as histórias de tantas outras pessoas que não se contentam com a utopia, mas trabalham pela mudança concreta. Marielle gerava uma explosão de sentimentos: ninguém ficava indiferente a ela. No dialeto da favela, alguns a chamariam de “marrenta”, “boladona”, “chapa-quente”. No asfalto, de “encrenqueira”, “destemida”, “esquerdista”. No fim das contas, todos reconheciam sua coragem.
Há mais de 15 anos, estive ao seu lado em vários movimentos: o “Posso Me Identificar?”, em 2003, após a chacina do Borel; a Campanha Internacional Contra o Caveirão, em 2006; além de tantos atos na Maré contra a violência policial. Marielle acolhia as famílias, pessoas desamparadas que precisavam sobreviver, mais uma vez. Ela sempre se colocou ao lado dessas mães, mulheres negras, faveladas, despedaçadas.
Não é à toa que muitas delas encontram em Marielle uma referência. No 40º dia de sua execução, algumas abraçaram e beijaram emocionadas dona Marinete. É muito difícil acolher e se manter presente na dor. Com Mari aprendemos que o amor move essas mulheres. Essas mães jamais terão seus filhos de volta, entretanto ganharam uma nova filha por quem lutar. É por Marielle. Mas é por nós. Não recuaremos.

*Renata Souza é ex-chefe de gabinete de Marielle Franco