A vida de Bira Carvalho, 'embaixador' da Maré que nunca baixava a câmera
Dia 2 de maio de 2013. Oito da manhã. Quatro caveirões e meia dúzia de viaturas da polícia militar e da polícia civil entram na comunidade Nova Holanda, a mais famosa do complexo de 16 favelas da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. População aterrorizada, trabalhadores impedidos de ir à labuta, crianças sem poder ir à escola ou agachadas sob as carteiras. Uma cena comum no cotidiano dos moradores.
Meio à rua Teixeira Ribeiro, o fotógrafo Ubirajara Carvalho, o Bira, troca ideia com um colega de profissão. Cadeirante desde os 23 anos, expressa-se usando o dorso e os braços. Dali, vai à casa de sua mãe Raimunda Zeferino de Carvalho, já na faixa dos 80 residente da rua M.
Logo que chegou à porta, o aviso: corre pra tua casa que os homens reviraram tudo. Com os braços musculosos, empurrou-se pelas vielas da Nova Holanda em direção à rua B. Encontrou a desgraça: a rampa de acesso estava estraçalhada. Seu equipamento fotográfico, quebrado ao meio; havia uma câmera sua dentro do vaso sanitário.
"Acho que foi porque perceberam, ao ver a casa, que se tratava de um militante", conjectura Renata Souza, 39, deputada estadual pelo PSOL, cria da Maré e grande amiga de Bira.
Segundo Mário Zeferino de Carvalho, 54, irmão do fotógrafo, o comandante do batalhão cravado no miolo da comunidade foi pessoalmente desculpar-se com Bira. Chegou a oferecer uma câmera fotográfica nova, que foi recusada com convicção. Ele não era homem de aceitar ajuda nem dos amigos, quanto mais do homem que coordenou a destruição de um trabalho de anos.
Hoje, os amigos calculam que seu acervo fotográfico contenha 17 mil imagens — não fosse esse prejuízo, poderia ter chegado a 40 mil.
Descrito por Paul Heritage, 63, professor da Queen Mary University of London, como "um grande embaixador da Maré" e "um diplomata do melhor do Brasil", Bira infartou sozinho, aos 51 anos de idade, rodeado de livros em sua cama na casa da rua M, onde a mãe morou do começo da década de 1970 até 2017. Eram 5h de segunda-feira, 29 de novembro de 2021. Pouco antes da pandemia, o principal fotógrafo da Maré descobriu ser diabético e ter pressão alta. Tirara uma pedra no rim e desde 2019 não saía mais de casa. Fotografava o cotidiano da rua M direto de sua janela gradeada, sentado na beira da cama.
Imagem: Arquivo Pessoal
Tiroteio e paralisia
Natural de Pendotiba, em Niterói, Bira, o quinto de uma família de seis filhos biológicos e um adotivo, perdeu o pai José Antônio Carvalho para um infarto fulminante quando tinha dois anos de idade. A morte deixou a família ao léu, dependendo de favores de familiares.
De barraco em barraco, pararam na Nova Holanda, presenteados com uma casa por um tio do fotógrafo — tio esse que o acolheu da infância aos 17 anos, pois Bira tinha um estômago muito sensível para tomar água de poço. Precisava viver sob condições melhores de vida.
Vivia então na rua das Laranjeiras, na zona sul do Rio. Escolarizou-se parte na zona sul, parte na zona norte, terminando os estudos num supletivo. Transitava cotidianamente entre a favela e o asfalto. Perto dos 18, escolheu morar em definitivo na primeira. Fez-se cria da Nova Holanda — "o primeiro de todos", como proferiu um jovem do lado de fora do velório de Bira, no Centro de Artes da Maré.
Era um homem turrão, do tipo que recusava ajuda para ter a cadeira de rodas empurrada até a última fibra muscular pedir arrego. Dizem que nascera assim, mas que se tornou ainda mais intransigente a partir dos 24, quando recebeu uma bala na espinha dorsal.
As versões quanto ao ocorrido concorrem até hoje. Nem irmãos nem amigos sabem ao certo qual é a verdade — Bira nunca esclareceu. Num dos testemunhos ele estaria dentro de um ônibus, em frente à favela Vila do João, quando uma troca de tiros intensa entre policiais e bandidos lhe presenteou com uma bala perdida. Na outra versão ele teria sido baleado enquanto tentava assaltar o ônibus, nessa mesma localidade.
Mário lembra que, ao visitar seu irmão no pós-operatório, no hospital municipal Souza Aguiar, recebeu dele uma triste notícia. "Não sinto minhas pernas."
Enfurnou-se em casa por mais de um ano; quase não saía da cama nem abria a cortina, arrasado pela perda de mobilidade. Foram necessárias dezenas, senão centenas de visitas de amigos para estimulá-lo a sair. Antes do ocorrido, praticava capoeira com determinação; depois, foi empurrado de volta aos esportes e, por meio da prática de boxe, tênis e natação, conseguiu recuperar o ânimo.
Bira Carvalho com Marielle Franco Imagem: Arquivo Pessoal
Imagens do povo
Três anos depois, já convalescido do corpo e da mente, mergulhou na luta por direitos da comunidade junto à amiga de infância Eliana Sousa Silva, 59, fundadora e atual diretora do Redes da Maré.
Navegava pelas favelas da Maré estimulando os jovens a trocar o ócio pelo esporte, a fim de lhes dar rumo e rotina ou, em casos mais extremos, disputá-los com o crime organizado. De 1999 em diante, passou a usar o espaço da então recém-fundada Vila Olímpica da Maré para se exercitar e treinar a juventude do complexo.
"Eu o conheci como praticante de boxe. Ele frequentava todas as lutas dos meninos comigo", conta a fotógrafa Kita Pedroza, 48. Frequentadora da Maré desde 2001, ela acompanhou de perto o projeto "Luta pela Paz", focado em ensinar artes marciais a crianças e adolescentes de favelas e então integrado por Bira, que chegou a dirigi-lo.
A convite de João Roberto Ripper, 59, Kita integrou a Escola Imagens do Povo, fundada em 2004 com o intuito de formar fotógrafos favelados para que eles pudessem retratar suas próprias comunidades para além dos estereótipos da violência urbana. Bira, assim como Renata Souza, fez parte da primeira turma, no morro do Timbau, dentro da Maré. "Ele era um desses estudantes que a gente gosta sempre de ter, participativo, questionador. Um fotógrafo dinâmico", lembra Ripper.
Já na faixa dos 40, fez o pré-vestibular da Maré que havia formado Marielle Franco, de quem ele foi grande amigo. Passou em direito na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), mas teve sua matrícula impedida por problemas burocráticos envolvendo o local onde cursara o supletivo. Ficou profundamente abalado.
Como sentia que não havia o que fazer, senão se dedicar à fotografia e aos esportes, Bira subia quase todo o morro do Timbau com os próprios braços. Brigava com qualquer um que ousasse ajudá-lo. A única pessoa que tinha o direito de dar aquela empurradinha final pela estrada terrosa era Renata, ninguém mais.
Bira era figura com liberdade de transitar por todas as 16 favelas sem ter problemas com as três facções que coexistem em tensão (Terceiro Comando Puro, Comando Vermelho e milícias). Jornalista do jornal comunitário "O Cidadão", Renata usava com frequência as fotografias de Bira.
Certa vez, ele flagrou um caveirão rodando a favela em plena luz do dia, perto de um campo de futebol onde brincavam crianças. Na época, a polícia afirmava só utilizar blindado em operações noturnas. Aquela imagem foi uma das primeiras grandes denúncias das lentes de Bira, que, reza a lenda, nunca abaixava a câmera.
A amizade dos dois perdurou e, em 2016, viajando pela Inglaterra em função do doutorado, Renata avistou no Horniman Museum and Gardens uma exposição sobre favelas do Rio de Janeiro.
Surpreendeu-se ao ver que um dos três fotógrafos selecionados era seu amigo Bira. Na mesma hora, encheu o celular dele de fotos e mensagens celebrativas. "Olha isso aqui!", exclamava. A exposição tivera sua primeira rodada em 2010, armada por Paul Heritage, que lembra do amigo brasileiro dono de um sorriso sardônico e um explícito orgulho da comunidade. Bira só botou os pés na terra da rainha em 2017, virando-se por pouco mais de um mês com um inglês enferrujado e a companhia de alguns amigos.
O fato de que exportou uma Maré digna de lembranças boas e prosaicas para o mundo é lembrado com muito orgulho por todos que passaram por sua vida.
"Ele via no dia a dia coisas que eu mesmo nunca parei para notar", lembra Mário. É impossível conversar com uma só pessoa que o tenha conhecido sem ouvir falar da exposição na Inglaterra. Bira elevava a autoestima da comunidade.
Sempre com a câmera no colo, servia de guia turístico do complexo para amigos de fora. André Liohn, renomado fotógrafo de guerra brasileiro, passou a frequentar a Maré anualmente por causa de Bira. Conheceram-se num festival internacional de fotografia em Porto Alegre, em 2012, após Ripper afirmar a Liohn que ele "é turrão, mas um baita fotógrafo; vai dar um abraço nele". Dali em diante, viraram amigos. A última vez que se viram foi em 2019, antes da pandemia, sentados na beira do Piscinão de Ramos, vendo o crepúsculo se assumir no céu carioca.
No velório que reuniu mais de 60 pessoas, Renata Souza, o vereador Tarcísio Motta (PSOL-RJ), membros da Redes da Maré e até traficantes locais se ofereceram para pagar os custos do enterro. Como de costume, o corpo seria velado na quadra de samba da comunidade, mas como o local servia também para os criminosos mortos, optou-se por velá-lo no Centro de Artes da Maré — decisão tomada coletivamente por familiares e representantes da comunidade.
Coberto de pétalas brancas, Bira foi posto na gaveta de número 20.494 do Cemitério do Caju. Uma chuva branda cobria as lágrimas das trinta pessoas que foram até lá se despedir do fotógrafo. Frente à gaveta, seis coroas de flores o homenageavam.
Uol