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'A desinformação gerou muita perseguição e discurso de ódio contra mim', diz deputada Renata Souza

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'A desinformação gerou muita perseguição e discurso de ódio contra mim', diz deputada Renata Souza

A jornalista e deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ) vive episódios de violência política de gênero desde 2018, quando concorreu pela primeira vez ao cargo. Em entrevista à Lupa, ela disse que a desinformação já fez com que fosse alvo de perseguição nas redes sociais. A parlamentar falou também sobre o impacto de Marielle Franco em sua trajetória. Renata foi assessora da então vereadora na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e afirmou que a primeira vez que teve medo de morrer em razão de sua atuação política foi logo após o asssassinato de Marielle, em março de 2018.

A conversa é a segunda de uma série realizada para o projeto SobreElas com mulheres negras que ocupam ou já ocuparam cargos públicos no Brasil. As parlamentares denunciam as diversas violências — diretas ou veladas — que sofreram e ainda sofrem durante o exercício político, tanto por serem mulheres quanto por serem mulheres negras em espaços historicamente ocupados por homens brancos. A primeira entrevistada foi a cientista política e ex-deputada federal Áurea Carolina.

Quando você decidiu entrar na política e quais foram as razões que te levaram a seguir esse caminho? 

A minha entrada na política se deu, basicamente, pela militância de defesa dos direitos humanos. Sou cria da favela da Maré e sempre construí toda a minha trajetória com os movimentos de territórios de favela e periferia no Rio de Janeiro. Então comecei a partir da comunicação, em especial trabalhando a humanização das pessoas que sofrem e são vítimas da violência do Estado.

Em 2006, comecei a militar pelo PSOL e foi quando a gente começou a pensar nesse lugar da política. Fiz a campanha do então pretendente, naquele momento, a um cargo de deputado estadual, Marcelo Freixo [ex-PSOL, atualmente no PT]. Ele foi eleito e fez um convite para que eu atuasse na assessoria de comunicação. Estava, portanto, em uma trajetória que obviamente era muito interessante: estar nos bastidores da política e não na linha de frente, não sendo uma figura pública.

É evidente que, quando coordenei a campanha da Marielle Franco em 2016, a gente também já estava entendendo a importância de ter mais mulheres na política. Mas, ainda assim, esse não era um lugar que almejava estar. Logo depois do assassinato de Marielle, entendi que é preciso dar nome ao que acontece com as mulheres pretas na linha de frente da política. E foi, de fato, o que aconteceu com Marielle Franco: um feminicídio político. A partir dali, muitos grupos com os quais a gente já estava envolvida começaram a me procurar e dizer que deveria me candidatar a deputada estadual. 

 

Crédito: Facebook, reprodução

Foi a decisão mais difícil que tomei na vida: me candidatar no momento em que a gente perdeu uma amiga querida, da maneira bárbara que foi. Quando entrei nesse processo, não sabia que poderia virar uma deputada efetivamente. E fui a mulher mais votada do campo da esquerda. Hoje, depois de ser reeleita para mais um legislatura como mulher mais votada da história da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), reinauguro uma responsabilidade do tamanho que representa as nossas dores, as nossas lutas, mas também a ressignificação dos espaços de poder e da política.

Quais episódios de violência política de gênero você já sofreu?

Os episódios de violência política de gênero surgiram já no processo eleitoral. Essa identificação com a Marielle trouxe uma gama de violência política pelas redes sociais. A primeira que me marcou foi no dia seguinte à nossa eleição, em 2018. Todas as minhas redes sociais foram atacadas. A gente ganhou um número enorme de seguidores que eram basicamente robôs.

Foram xingamentos horríveis, em todas as plataformas. Os ataques, além de serem racistas, machistas e misóginos, também pretendiam derrubar as minhas páginas.

A gente tomou várias iniciativas de segurança, desde mudança de endereço e de rotina. E isso só foi aumentando conforme o nosso mandato foi ganhando visibilidade.

Aos quatro meses de mandato, assumi a presidência da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos. E fiz uma denúncia internacional contra o então governador — hoje ex-governador e ex-juiz Wilson Witzel — por utilizar helicópteros como plataforma de tiros. Plataforma de tiros é proibida até em países em guerra. Quando fiz essa denúncia, tentaram cassar o meu mandato. Isso é muito simbólico do nível de perseguição de violência política que nós, mulheres pretas vindas da favela e periferia, sofremos quando ousamos enfrentar o status quo da política.

Há outros exemplos dentro da própria Alerj, como a tentativa de silenciamento por outros deputados. A gente tem sucessivas violências no cotidiano do plenário, desde a tentativa de desqualificação, de imposição a lógicas vexatórias. Infelizmente, a nossa justiça ainda é muito pouco sensível.

Um dos últimos episódios que sofri na Alerj foi durante o último processo eleitoral [2022] para deputado estadual. Estava fazendo um discurso sobre o número elevado de feminicídios de mulheres pretas por arma de fogo. E um deputado que estava na minha frente no plenário fez aquele sinal de arma, apontando para mim no mesmo momento. No Ministério Público, um dos argumentos que tive que ouvir para o arquivamento do caso era que aquilo se tratava de uma briga comum entre parlamentares. Arquivaram o caso porque acharam comum ele fazer um sinal de arma quando falava de feminicídio de mulheres pretas
.

Com tantas violências e dificuldades no seu caminho, você pensou em desistir?

Nunca pensei em desistir. Porque entendo que as violências que sofro hoje, diante do trabalho que tenho feito, também representam um nível de incômodo que é a minha existência na política hoje no estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Significa que tem uma importância. Estou incomodando a partir de um lugar de defesa daqueles que nunca foram prioridades na política. Esse status quo de uma elite branca, endinheirada, que se perpetuou na política. 

Entendo que desistir não é uma opção.

Nunca foi uma opção para nós, defensores e defensoras dos direitos humanos, para nós pretos e pretas da favela. Mas é evidente também que, quando essa pergunta chega para mim, isso também lembra o grau de humanidade que preciso ter comigo mesma. Eu sou humana, sinto dor, choro, tenho medo, mas o meu medo me fortalece. O meu medo é combustível para a luta, para que ninguém sinta medo. Para que ninguém sinta dor. Hoje tenho certeza que não consigo me imaginar em outro lugar. 

A morte de Marielle Franco foi um evento extremo da violência política, que você classificou como feminicídio político. O fato é que isso acabou estimulando outras mulheres negras. Qual é a influência que a Marielle teve na sua vida?

Não tenho dúvida que [teve], não só na minha vida, mas na vida dessas mulheres que descobriram que podem ser candidatas. Elas descobriram que, sim, esse rosto preto de uma mulher linda da favela e da periferia pode, sim, encarnar o da política. 

 

Renata Souza e Marielle Franco. Crédito: Arquivo pessoal, reprodução Facebook

Acho que o feminicídio político de Marielle inaugura para todas nós uma responsabilidade enorme. E não é só no campo da política. Vejo que mulheres também se descobriram na luta pelo espaço da mulher na universidade. As mulheres jornalistas também reivindicando esse lugar de serem reconhecidas, sendo chefes de redações. Para as mulheres enquanto “sujeitas políticas” que somos, seja em qualquer lugar que estejamos.

Representou uma combustão do lugar da mulher na sociedade, em especial das mulheres pretas e faveladas. Acredito que a violência política de gênero tenta retirar dessas mulheres uma vontade de estar na luta política. Porque, afinal de contas, você abdica da sua liberdade.

Nós não podemos mais ir à padaria para comprar pão sozinhas. É um preço muito alto que se paga para estar na luta política, ainda mais referenciadas com a luta que Marielle deixou. Mas a gente precisa seguir juntas, é essa a grande diferença. É um preço alto, mas a gente entende que essa luta é para que as outras pessoas não percam sua liberdade.

Em algum momento já passou pela sua cabeça o medo de perder a vida? Como você convive com isso?

O primeiro momento que tive medo de morrer foi logo depois do assassinato da Marielle, porque sabia que poderia estar no carro com ela. Que poderia também estar junto com ela em algum momento.

Se cada uma de nós pode ser a próxima vítima, a gente vai esperar que socorro? Não dá para esperar sentada. Tenho certeza que todas as iniciativas que tive que tomar a partir do assassinato da Mariele — de mudança de rotina, de endereço, de estar nos lugares que quero estar, seja comprando um pão — não tenho dúvida que isso também foi para me preservar. E para preservar outras mulheres.

O medo é óbvio e é constante. Mas não é um medo que me paralisa. Pelo contrário: esse medo e proximidade com a morte demonstram que a gente tem que agir. A gente está aí para isso, para trabalhar. E para não morrer e para não deixar que nenhuma de nós seja a próxima vítima.

Você já foi vítima de desinformação?

Quando fui candidata a prefeita do Rio de Janeiro em 2020, uma rede de desinformação, dizendo que eu tinha promovido atos contra Jair Bolsonaro (PL), passou a divulgar a minha foto e o endereço da minha casa. Nós entramos na Justiça para que o meu endereço fosse retirado das redes sociais. E a desembargadora, na época, respondeu ao nosso pedido dizendo que eu era uma pessoa pública e que, portanto, deveria aguentar aquele tipo de situação.

Lembrando que, sim, era uma pessoa pública, mas o endereço da minha casa não é um endereço público, ainda mais com o nível de ameaça de morte que já tinha naquele momento. Isso fez com que eu me mudasse mais uma vez.

Essa desinformação gerou para mim muita perseguição e discurso de ódio. Foi uma situação difícil até no local onde morava. A desinformação e o discurso de ódio se complementam
.

Há outros episódios, como as tentativas de me criminalizar, justamente porque venho da favela da Maré. A favela é vista como inimigo primeiro na política de segurança. Nós, defensores de direitos humanos, somos taxados como criminosos. Ou como se a gente tivesse algo em comum com criminosos. Esse tipo de tentativa de taxação é constante, seja nas redes sociais ou no próprio plenário da Alerj
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Crédito: Reprodução, Facebook Renata Souza

Uma vez, um deputado usou o microfone para questionar como eu entrava nas favelas do Rio de Janeiro. Essa lógica de tentar criminalizar a gente. Ora, vou entrar e sair dentro da favela da Maré na hora que eu quiser, sou cria da Maré. É evidente que todos os espaços que frequento é porque tenho um núcleo, um coletivo que está fazendo os debates com a gente em relação à superação da miséria, da fome. Vou para muitos grupos diferentes, em regiões diferentes em toda a periferia no Rio de Janeiro. A gente tem um trânsito importante e até esse trânsito incomoda muita gente.

O que você poderia falar para essas mulheres negras que têm dúvidas sobre continuar na carreira política?

Primeiro, que é possível, sim, estar na política de cabeça erguida. Entendendo que o trabalho de todas nós mulheres, mulheres pretas, ligadas às favelas, às periferias, ligadas aos trabalhadores e às trabalhadoras que nunca foram prioridades na política, é fundamental.

Os desafios são enormes, mas quanto mais mulheres e mulheres pretas engajadas na luta política, melhor. Esse lugar que historicamente foi negado para a gente vai ter que entender que nós precisamos estar.  

A gente está em um número ainda muito aquém do desejado. Hoje, a política é feita por homens brancos dessa elite política e econômica. Nunca chegaremos a fazer um debate, por exemplo, sobre igualdade salarial para as nossas mulheres com eles — mulheres que desempenham inclusive as mesmas funções em vários lugares que os homens —, ou debates importantes como licença maternidade. São muitos temas que tenho certeza que já teriam sido vencidos nos debates dentro do parlamento. Os homens legislam sobre o nosso corpo, sobre a nossa vida. E nós precisamos estar nesses lugares para que a gente legisle pela vida das mulheres.

Não tenho dúvida que muitas mulheres hoje são eleitas para reproduzir a lógica patriarcal também dentro dos parlamentos. Vejo as mulheres que são companheiras de políticos e elas dificilmente vão incorporar as pautas que nós, do campo de esquerda e progressista, incorporamos.

Descreva em uma palavra o que você está sentindo.

A palavra que me persegue é coragem

Economia em Pauta

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